Nesse dia chovia torrencialmente. Por esse motivo, as crianças estavam impedidas de se evadir do alpendre e, mesmo ali , algumas gotas perdidas teimavam em molhar aquelas que, alheias à intempérie, não desistiam das suas brincadeiras. Chegou a hora do lanche; a custo, as três crianças sentaram-se na farta mesa que a avó carinhosamente preparara e onde não faltava nenhuma das iguarias predilectas dos amados netos. Ao longe, pastavam as vacas na companhia das ovelhas, admirando os cavalos que se aventuravam na barragem com o intuito de beberem a mais fresca das águas. Chegou o avô, um velho homem feliz que abandonara a cidade para se refugiar no meio do nada, rodeado dos seus animais, que após criar, vendia, sendo os seus parcos lucros os únicos meios de subsistência que necessitava.
Longe vão os tempos da azáfama, em que os dias começavam demasiado cedo e terminavam excessivamente tarde, na intensa labuta de um restaurante, onde casais românticos se deliciavam em pequenas mesas redondas à vela iluminadas. A vida do avô, não foi sempre a pacatez que os meninos conheceram: noutros tempos foi gerente da editora Manuel Osório de Albuquerque, propriedade do seu intimo amigo Zé (que mantivera a denominação que o seu pai lhe dera, em homenagem em quem a havia constituído e posteriormente lhe a transmitira), um eterno romântico apaixonado que fazia da leitura uma ocupação integral, não tendo nem tempo, nem paciência, nem talento, para os problemas mundanos da sua empresa.
Um dia Zé casou. A amada esposa foi uma recatada espanhola que conheceu pelos classificados de um matutino. Pode mesmo afirmar-se ter sido amor à primeira carta, porquanto ainda o carteiro não havia completado a sua terceira viagem já Zé voava para Madrid em classe turística na companhia de um deslumbrante anel de noivado (o anel de Marta, porque Marta era o nome da amada espanhola) e dois bilhetes de volta, em primeira claro...
A estada de Marta na vida de Zé, foi efémera no tempo mas profícua nos efeitos. Alegando o tédio por nada, fazer induziu o seu submisso esposo a oferecer-lhe um pronto-a-vestir feminino, do qual se tornou não apenas a proprietária, mas também a melhor das clientes; entretanto, com os supostos lucros do estabelecimento, adquiriu um automóvel topo de gama e gastou liberalmente em jóias e refeições requintadas nos melhores restaurantes. A cega paixão de Zé não se esmoreceu mesmo quando os primeiros credores do pronto-a-vestir começaram a rondar a sua porta, estando sempre disponível para escutar atentamente cada uma das histórias mal contadas de Marta. Foi desse tempo a discussão do avô com Zé. Quando aquele o tentou elucidar acerca dos problemas que o deviam preocupar, foi sumariamente despedido por tentar beliscar a idoneidade de uma santa.
Só meses mais tarde o avô recebeu novas notícias. Certo dia ao acordar, Zé encontrou um armário despido e uma montanha de dívidas. Entre as dívidas sobressaía uma para com Ernesto de Esc: 10.000.000$, relativa a um mútuo para a aquisição do imóvel no qual se instalou o pronto-a-vestir (sendo que em razão da amizade entre Ernesto e Zé, não existe qualquer documento a comprova-la), bem como dívidas de Esc: 2.000.000$ a fornecedores e de Esc. 1.500.000$ na ourivesaria que Marta frequentava.
Muitas vezes o avô contou esta história, estendido na rede com o seu sábio cachimbo: era a sua forma de ensinar aos netos o valor e a importância das suas escolhas...
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