Monday, May 29, 2017

Caso 82


Estava um dia quente. Terrivelmente quente.Daqueles em que cada poro tem o semblante do pecado. Em que o sono não nos encontra e a madrugada enche-nos de pensamentos impuros. Recalcamentos. Saudades do que tivemos! Saudades do que ainda está para chegar. Quando o sonho e a fantasia se misturam e insistem em dizer que afinal tudo ainda é possível. Como nas comédias românticas de domingo à tarde!
Hermenegilda apenas adormeceu quando o cansaço a derrubou! Estava excitada (ainda que num sentido diferente daquele que a mente do meu aluno está a pensar)! Amanhã seria o primeiro dia do resto da sua vida: ia concretizar um velho sonho e abrir a sua empresa de organização de casamentos. O seu sonho era acontecer-lhe o mesmo que naquele filme parolo em que a organizadora de casamentos se apaixona por um príncipe grego e vivem felizes para sempre. Mas, tantos anos a colecionar sapos, faziam-na duvidar de si mesma. Talvez por isso, não se aventurou sozinha. A empresa pertencia também a Afrodite, feia que nem uma porta, mas muito talentosa, que entrara para esta aventura com um estabelecimento comercial dedicado ao catering, do qual era proprietária há vários anos. Para desgosto do infortunado Amilcar, seu senhorio, que há muito cobiçava o estabelecimento. Para assinalar a sua atividade adotaram a designação Maçã, identificando-se com um desenho desta fruta, para desta forma simbolizarem que o casamento pode ser comer o fruto proibido.
Porque queriam captar noivos estrangeiros, promover junto deles o prazer de casar em agosto no alentejo, pensaram em ir a um conjunto de feiras no estrangeiro. Mas, como o investimento era demasiado oneroso, decidiram unir-se a várias concorrentes e irem todos juntos, à molhada, como dizia o Herman.
Há uns anos, quando ainda trabalhava sozinha, Afrodite comprou umas calças de ganga, daquelas modernas, com buracos nas pernas, para exibir as meias de xadrez pretas que comprava nos chineses, quando estavam em saldos. E uma roupa badalhoca, para estrear com o namorado, comprada na loja Roupa Badalhoca.
E tudo correu bem até que começou a correr mal. Como na vida. Como no amor e no desamor. Como nos testes de direito comercial.
Quid Juris


Caso 81

Desde que tem consciência de si mesmo que Artur Corvelo sonha com o reconhecimento, a fama, ser bajulado e viver uma vida mundana, muito mais profana do que sagrada. No outono da adolescência convenceu-se de um alegado talento para a escrita e decidiu escrever um livro, o grande romance lusitano, que lhe oferecesse a notoriedade que se achava merecedor. E, não obstante o mesmo ter sido publicado, faltou-lhe o engenho de Mark Twain e as suas personagens nunca foram um Huckleberry Finn. Já antes disso, quando foi estudar sem sucesso para Coimbra, ainda publicou umas enfadonhas poesias, que foram lidas com escárnio.
Com a morte do seu pai, rapidamente delapidou a pequena herança e a vida obrigou-o a viver por caridade na casa das suas tias, em Oliveira de Azeméis, onde continuou uma existência parasitária, perdido entre os sonhos imponentes e a preguiça que lhe tolhia os movimentos. Pressionado pela tia, arranja emprego como gerente de uma farmácia, apesar de abominar a vida de comerciante de província.
Vasco, o seu patrão, era farmacêutico por tradição familiar e, porque era um provinciano moderno, decidiu alargar o seu negócio, pelo que, fez um contrato oral com um seu vizinho, através do qual, iria explorar o café central da cidade. Para não misturar os patrimónios, resolveu constituir uma sociedade, com a esposa e os filhos, com o nome de Café Central, cujo gerente iria ser Rabecaz, um marialva de provincia, bem conhecido pela sua íntima amizade com o álcool. Quem não gostou nada de saber destas notícias, foi o Comendador Qualquer Coisa, legítimo proprietário do imóvel onde estava localizado o café.
Foi por essa altura que Artur recebeu a alegre notícia da morte do seu padrinho, que lhe deixou uma pequena fortuna de herança; no dia a seguir a receber o dinheiro, mudou-se para Lisboa para concretizar o seu sonho de fama, com o secreto desejo de um dia ser entrevistado pelo Daniel Oliveira e responder que os seus olhos dizem todas as letras do alfabeto, incluindo as três esquisitas.
Porque era menos tolo do que no livro, fez um contrato com Vasco em que, a troco de um investimento da farmácia, iriam partilhar entre si os lucros. Embora Artur tenha exigido que a farmácia se começasse a chamar de Supositório.
Como o meu bom aluno sabe, tudo correu mal a Artur na sua estadia na capital: Melchior e Meirinho, os seus “amigos” lisboetas demonstraram ser duas sanguessugas que lhe fizeram desbaratar a fortuna em trivialidades, e depois apareceu a espanhola, quase pura, quase casta, apaixonada pelo dinheiro dele, que, enquanto não fugiu com o guitarrista, lhe sacou o resto do dinheiro, até ao dia em que precisou vender roupa para conseguir pagar a viagem de regresso à casa agora silenciosa pela morte da sua tia e cujo funeral não assistiu, por causa de uma francesa travessa.

Não obstante, foi recebido em Oliveira de Azeméis com a pompa e circunstância que os provincianos tendem a dedicar a quem tem fama de cosmopolita. E, após mistificar histórias sobre a sua vida na Capital, colocou em Vasco a semente da cobiça e também este arranjou uma espanhola para o explorar. Quando se soube, a esposa e os filhos,reuniram-se numa Assembleia Geral não convocada, para decidir algo muito importante para a sociedade mas que, infelizmente, agora não me recordo o que foi.