Monday, April 13, 2009

Caso 46

Conheci-a num dia de denso nevoeiro; recordo-me como se tivesse sido hoje! Era um fim de tarde, de um dia frio, apesar de o calendário marcar a Primavera e nos convidar para os tons quentes de Verão. Mas estava inusitadamente frio. Muito frio. Estava sentado com o mp4 a ouvir musica e a ler o Leitor de Bernhard Schlink, quando ela emergiu do denso branco, uma verdadeira miragem, uma autêntica princesa: vestiu umas calças de ganga, daquelas com pequenos rasgou que estão na moda, umas botas pequenas, uma blusa de lã grossa e um casaco azul, apertado, arredondando-lhe as formas. E sorria. O mais lindo sorriso do mundo…
Nunca soube o seu verdadeiro nome, apenas a alcunha com que todos a designavam: Xica Bia!
Xica Bia cultivava as mais belas margaridas do Sul do País e vendia-as com orgulho nas melhores floristas do Alentejo e Algarve. E ganhava bastante dinheiro. Mas pouco para ela, que tinha o secreto desejo de se tornar rica, bem mais rica que o cruel Sebastião que a deixara anos antes, para casar com Felisbela, a mais rica donzela da sua aldeia!
Por isso, muniu-se de toda a sua ambição e comprou a Juvenal a florista dele, sem que ninguém tenha sido informado deste negócio. Para se designar adoptou a denominação XicaBia e para designar a florista, Pataniscas dos Restolho, sendo que todas as flores que vendia, sejam ou não cultivadas por ela, se denominavam por Noquia!
Apesar de o seu primo a ter aconselhado, Xica Bia após começar a sua actividade, não cumpriu nenhuma das obrigações legais a que estava obrigada. O seu único objectivo era ganhar o máximo de dinheiro, o mais rapidamente possível, correndo todos os riscos necessários. Até que as coisas começaram a correr tragicamente mal, com os credores a bater na sua porta, porque há três meses que ela não conseguia pagar facturas.
Por isso, decidiu fechar a florista e abrir um bar, ciente que se os alunos de gestão não são flores, comecem imenso álcool, pelo que poderia ter elevadíssimos lucros.
Quis Juris


1 comment:

Unknown said...

Proposta de resolução

Analisando a situação descrita, com recurso ao Código Comercial (C.Com.); ao DL n.º 129/98 de 13 de Maio, que estabelece o regime jurídico do Registo Nacional de Pessoas Colectivas (Reg. RNPC); e ao DL n.º 36/2003 de 5 de Março que aprova o Código da Propriedade Industrial (C.P.I.), apresento argumentação quanto aos actos e negócios praticados pela senhora que se faz identificar por Xica Bia.

No contexto dos factos apresentados, Xica Bia desenvolve uma actividade económica, legalmente não qualificada como comercial, pois conforme o art.º 230º § 2º do C. Com. “não se haverá como qualificada no n.º 2º (do mesmo artigo, que qualifica de comerciais, as empresas singulares ou colectivas que forneçam géneros ao público, mediante preço convencionado), o proprietário ou explorador rural que fizer fornecimento dos produtos da respectiva propriedade”. É reforçada ainda esta classificação, pelo art.º 464º, 2º do C. Com. que considera não comerciais as vendas que o agricultor faça dos produtos de propriedade sua ou por ele explorada.
Deste modo, o cultivo e venda de margaridas enquadra-se neste ramo de actividades agrícolas, qualificadas como não comerciais, o que permite afirmar que Xica Bia não é comerciante, pois para ter essa designação teria que praticar actos de comércio especialmente regulados no Código Comercial (art.º 2º, 1ª parte), verificando-se precisamente que desenvolve uma actividade económica cujos actos são classificados de não comerciais.
Apesar de não ser comerciante, é lhe permitida a utilização de uma firma, conforme previsto no art. 39º do Reg-RNPC, sob a qual os empresários individuais não comerciantes, poderão ser designados no exercício dessa actividade.
Num segundo momento Xica Bia, compra a florista a Juvenal. Entendendo-se por florista, o estabelecimento comercial de Juvenal, estamos perante um negócio jurídico denominado trespasse (art.º 1112º, n.º 1, al. a) do C.Civ.), em que Juvenal transmite para a empresária designada por Xica Bia, todos os elementos corpóreos e incorpóreos do seu estabelecimento comercial. Este negócio para ser válido deverá ser celebrado por escrito, sendo obrigatória a informação ao senhorio, (art.º 1112º, n.º 3 do C.Civ.) que poderá resolver o contrato de arrendamento, dado não ter sido informado por Juvenal e num prazo de quinze dias, conforme obrigações do locatário enumeradas no art.º 1038º, al.g) (C.Civ.), do negócio de trespasse efectuado.
Poderá ainda o senhorio alegar que não houve trespasse, dado que não foi transferido o nome ou designação do estabelecimento comercial. (art.º 1112º, n.º2, a) (C.Civ.).
Existe ainda a possibilidade de o senhorio do imóvel utilizar o direito de preferência, conforme descrito no art.º 1112, n.º4 (C.Civ), requerendo num prazo de seis meses após tomar conhecimento do negócio de trespasse e depositando o preço pago por Xica Bia nos quinze dias após a apresentação da acção com essa intenção, conforme art.º 1410º, n.º1. do C. Civ.

Quanto à marca escolhida por Xica Bia para as suas flores, Noquia, o seu registo não lhe será permitido, dado que a nome escolhido é fonética e gráficamente muito semelhante à marca Nokia, sobejamente conhecida no mercado dos equipamentos de telecomunicações móveis. O art.º 242º, n.º 1 do C.P.I., protege as denominadas marcas de prestígio, mesmo que a nova marca forneça produtos ou serviços sem qualquer afinidade com os daquela marca. Assim e apesar de fornecer flores, que não serão confundíveis com telemóveis, a marca pretendida por Xica Bia resulta duma “tradução” da marca de prestígio, e procura tirar partido do carácter de prestígio daquela, o que não permitirá o seu registo.
Porém, Xica Bia poderá vender flores de marca Noquia, embora esteja sujeita a ser processada pela multinacional Nokia pelo uso abusivo da sua marca registada, e a sofrer sanções, conforme previsto no artigo 323º al. e) do C.P.I.
Com a compra da florista e por comprar flores para vender, Xica Bia passa a ser comerciante, pois pratica actos de comércio (art.º 2º, 1ª parte, C.Com.), fazendo disso sua profissão (art.º 13º, 1º, C. Com.), já que pratica compras e vendas comerciais, comprando flores, para revender em bruto ou trabalhadas (art.º 463º, 1º, C.Com.).
Com a assunção deste estatuto, Xica Bia fica obrigada a cumprir o descrito art.º 18º do C. Com.. Apesar de já utilizar uma firma, deverá registá-la e manter uma contabilidade, que permita a identificação e fiscalização dos negócios realizados.
Assim, conforme art.º 10º do Reg. RNPC, está o comerciante individual sujeito à inscrição no Ficheiro Central de Pessoas Colectivas (FCPC) de certos actos e factos ligados à sua actividade comercial, tais como a adopção de firma, localização da sua sede, actividade exercida e suas alterações e ínício ou cessação de actividade. Deverá também pedir certificado de admissibilidade da firma pretendida (Xica Bia), conforme previsto no art.º 46 do Reg-RNPC.

A gestão danosa que Xica Bia praticou na sua actividade comercial, fez com que caísse em situação de insolvência, já que se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações (art.º 3º, n.º 1 do CIRE), neste caso pagar aos seus credores as facturas vencidas. A firma Xica Bia é passível de ser declarada insolvente, conforme art.º 2º, n.º 1 do CIRE e não se enquadrar em nenhumas das excepções previstas no n.º 2 do mesmo artigo.
Perante este reconhecimento a firma Xica Bia, tem o dever de apresentar-se à insolvência, devendo requerer a sua declaração de insolvência nos 60 dias seguintes à data em conheça a sua situação de insolvente. (art.º 18º, n.º 1 do CIRE).
A petição inicial de insolvência é obrigatóriamente escrita e deverão ser expostos os factos, indicando neste caso, que a situação de insolvência é actual. (art.º 23º, n.º 1 e 2 a) do CIRE). A esta petição deverá ainda ser anexada uma lista de todos os credores e respectivos montantes de crédito, assim como documentos que atestem todas as actividades a que se tenha dedicado nos ultimos três anos e os estabelecimentos de que seja titular, tal como previsto no art.º 24º, n.º1 alíneas a, b e c do CIRE).
A declaração de insolvência poderá ainda ser requerida por qualquer dos seus credores (art.º 25º, n.º 1), pelo não cumprimento generalizado de obrigações vencidas (art.º 20º, n.º 1 a) do CIRE), ou pelo abandono do local em que a empresa exerce a sua actividade (art.º 20º, n.º 1 c) do CIRE), dado que Xica Bia fechou a florista.
A petição é apresentada por Xica Bia, e a sua insolvência é declarada até ao 3º dia útil após a entrega da petição inicial (art.º 28 CIRE), sendo nomeado um administrador judicial provisório até que seja proferida a sentença de insolvência, nos termos do art.º 32º do CIRE.
Na sentença de insolvência e conforme previsto no art.º 36º alineas a, d e h do CIRE, o juiz indica data e hora da prolação, nomeia um administrador de insolvência com indicação do seu domicílio profissional e ordena que sejam entregues ao Ministério Público elementos que indiciam infracção penal. Conforme art.º 39º, n.º 1 e 9 do CIRE, dado que o património de Xica Bia, é inferior a 5.000 €, não sendo suficiente para as custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, declarou aberto o incidente de qualificação com carácter limitado.
Decorridos cinco dias, nenhum dos interessados requereu complemento à sentença com as restantes menções do art.º 36º do CIRE, talvez por desconhecimento dos procedimentos ou receio das custas que teriam que suportar. Assim, em cumprimento do art.º 155º do CIRE, o administrador de insolvência elaborou um relatório qualificando como “inexistente” e inconclusiva a contabilidade da comerciante Xica Bia, não havendo documentação que permitisse analisar a situação financeira nem perspectivar a viabilidade do estabelecimento, ao qual anexou uma lista do inventário e dos credores. Foi realizada no 6º dia subsequente e depois de junto o relatório aos autos, a assembleia de credores ou de apreciação de relatório em que nenhum dos interessados se pronunciou.
Dentro do prazo estipulado de 45 dias subsequentes à assembleia de credores (art. 191º, nº1 a) CIRE), não foi alegado por qualquer interessado, motivo à qualificação da insolvência como culposa (art.º 188º, n.º 1 CIRE). No entanto no decorrer do prazo legal de 15 dias após decorridos aqueles, o administrador de insolvência, apresentou parecer, onde fundamentou e comprovou que a insolvência deveria ser qualificada como culposa, identificando a Sra. Maria Violeta, que exerce a sua actividade sob a firma de Xica Bia, como a responsável deste incidente.
Depois da análise prevista pelo Ministério Público (art.º 188º, nº 3 CIRE), este pronunciou-se pela insolvência culposa, segundo análise documental e apoiado no parecer do administrador de insolvência. Anexados aos autos os dois pareceres, o juiz notificou a devedora, fazendo acompanhar essa notiicação dos pareceres recebidos do Ministério Público e do administrador de insolvência, conforme artº 188º, nº 5 do CIRE, para que a mesma se opusesse no prazo de 15 dias.
Decorrido o prazo de 10 dias, Xica Bia, não se opôs, sendo que o julgamento do processo foi realizado e Maria Violeta considerada responsável pela insolvência da firma Xica Bia, proprietária do estabelecimento Pataniscas do Restolho.
A insolvência foi qualificada (artº 185º do CIRE) como culposa, dado que a situação de incumprimento da actividadade económica da firma Xica Bia foi criada e agravada com dolo pela devedora na pessoa da arguida Maria Violeta, (artº 186º, n.º 1 do CIRE) nos últimos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Sentenciada a insolvência como culposa o juiz, aplicando os artigos 191º, nº 1 c) e 189º, nº2 do CIRE, procedeu em conformidade, identificando Maria Violeta como pessoa afectada pela qualificação e decretou a sua inabilitação com os efeitos previstos no artigos 152º e seguintes do Código Civil, por um período de 4 anos. Neste caso e como a sentença afecta um comerciante em nome individual, foi também registada a inibição para o exercício do comércio, junto da Conservatória do Registo Comercial, além do registo efectuado na Conservatória do Registo Civil para a sua inabilitação, conforme artº 189, nº 3 do CIRE.
Apesar destas limitações, Xica Bia pensa abrir um bar, o que não lhe será permitido fruto da sua inabilitação, já que não pode dispôr do seu patromónio ou realizar quaisquer negócios ou contratos por se encontrar incapacitada, aplicável que é ao regime das inabilitações o artigo 139º (C.Civ.) do regime das interdições, que equipara o sujeito interdito ao menor e portanto sem capacidade jurídica para o exercício de direitos(artº 123º do C. Civ.).

Pedro Margarido - n.º 5228